Por Matheus Pinheiro Teutschbein
A
China atualmente é um dos países de maior crescimento econômico do mundo.
Possui uma cultura milenar, que vinculava autoritarismo e vida comunitária,
mesclada a uma revolução que parecia indicar um novo modelo social para os
países do Terceiro Mundo. Porém, hoje se depara com o capitalismo ocidental e
seu individualismo, seu consumismo e suas desigualdades.
O
caminho a ser trilhado pela China neste século será decisivo na conformação da
nova geopolítica internacional do século XXI. Essas mudanças, contudo, não se
dão sem conflitos: o “socialismo com mercado”, como é oficialmente denominado,
aparece conjugado a dura repressão política e ao reavivar das desigualdades
econômicas, reforçando assim a grande diversidade geográfica e cultural do
país.
Mas
os efeitos da entrada do capitalismo já são bem claros. A possibilidade de
formar sua própria empresa acaba por acirrar a competição, acentuar as
desigualdades e por fazer proliferarem os mercados.
É
muito contraditória a visão que os dirigentes chineses possuem da “modernidade”
(capitalista) em implantação no país. Ora o capitalismo é útil para o progresso
da humanidade, ora é o veiculo da “população espiritual do Ocidente”. Essas
contradições se manifestam não só no nível político-ideológico, mas também na
dimensão espacial.
Já
existem hoje 2 milhões de assalariados vinculados ao capital estrangeiro, e 10%
da economia chinesa se deve a iniciativa privada, incluindo milhares de
pequenas empresas. Pequim, enquanto capital do país, pode ser vista como um
espelho dessa Nova China. As redes de tevê, transmitindo dali para todo o país,
encarregam-se de defender a ideologia da modernização via “socialismo com
mercado”.
O
impacto desse mundo ocidental e capitalista, associado a ingenuamente pela
massa de migrantes, na maioria camponeses, ao mundo “livre e moderno” das
cidades e da costa chinesa, leva ao acirramento das desigualdades sociais.
Estas se reproduzem especialmente em pelo menos dois grandes “recortes”, que é
o tradicional confronto campo-cidade e, especifico da China, a desigualdade
entre leste e oeste, as províncias do litoral e as do interior.
Mesmo
reconhecendo a velocidade das transformações recentes, da rede estatal e/ou
capitalista modernizadora que penetra gradativamente no território, é inegável
que as condições rural-urbanas são uma das bases ainda nítidas que
reproduzem/fortalecem a desigualdade social.
Primeiro
porque, assim como no resto do mundo, a transformações ou a “difusão de
inovações” tendem a serem muito mais rápidas nas áreas urbanas. Porém, a
modernização do campo, dada a elevada densidade demográfica e o reduzido
tamanho das propriedades, em muitos casos seria mesmo contraproducente. Não só
pelo provável desemprego, como também pelos problemas ecológicos e a
consequente queda de produtividade que poderia provocar.
Talvez
mais importante ainda seja a herança cultural tradicional extremamente
arraigada entre os camponeses, onde a “modernidade” em termos de conquista
efetivada autonomia e construção do individuo continua em grande parte um mito,
ou um indicador da “poluição espiritual do Ocidente”, como ainda pregam muitos
quadros do partido.
O
distanciamento campo-cidade soma-se hoje o enriquecimento de alguns camponeses,
estabelecendo a desigualdade no interior das zonas rurais, especialmente nas
regiões mais atingidas pelas transformações econômicas no sul do país. O
problema não é o enriquecimento desses camponeses, e sim a burocracia do
partido e o súbito enriquecimento de muitos de seus funcionários, que fazem
crescer ainda mais as desigualdades ás custas de contribuições ilegais e da
divisão dos bens públicos, gerando assim a revolta dos camponeses.
A
China foi o primeiro país dito socialista a iniciar seu processo de abertura e
reforma econômica e hoje é um dos últimos bastiões da ditadura comunista. Por
ter sido instigada pelo “modelo” dos tigres e do próprio Japão, com quem sempre
disputou a liderança regional, que a China promoveu seu “capitalismo vermelho”.
O
projeto de formação de uma “zona econômica da Grande China”, embora rechaçado pelo
ministro chinês do comércio exterior, vem gerando discussões acirradas. A
maioria dos chineses ultramarinos emigrou na segunda metade do século XIX e no
começo do século XX, instigados pelos problemas políticos e sociais e pela
projeção imperialista em outros países da Ásia. Mais tarde, a invasão japonesa
de 1937 e a revolução comunista foram decisivas para a migração, especialmente
dos que compunham a burguesia local, hoje são incentivados a retornar a China
em campanhas promovidas pelo próprio governo chinês.
Mesmo
antes da abertura da China Popular os chineses ultramarinos já constituíam uma
fonte de renda muito importante para o país, pois os negócios entre suas
empresas e o governo chinês injetavam bilhões de dólares na economia.
Autores
como o cientista político Zaki Laidi (1992) considera que a estrutura bipolar
da antiga “ordem” mundial se baseava numa relativa coerência entre “a
capacidade de produzir sentido e a de gerar a potência”, hoje seriamente
contestadas. Dessa forma, o atual sistema internacional seria complexo, volátil
e ambivalente, gerando um “relaxamento da ordem mundial”. A idéia de potencia
torna-se cada vez mais precária, num mundo de fluxos imateriais e
desterritorializados.
Em
relação à realidade chinesa a sua emergência como pólo regional, diante do peso
crescente do Japão, Laidi se refere a um processo também simultâneo de harmonia
e desintegração. O fracionamento interno do país, especialmente coma criação
das zonas econômicas especiais, impede os países ocidentais de terem uma
atitude mais global em relação à Pequim.
Toda
essa “vocação” de potência regional numa era de crise e transição da ordem
mundial insere a China num emaranhado de combinações interestatais e de
processos econômicos onde as relações com o Japão talvez sejam a de maior
relevância.
Muito
já se falou da especificidade do espaço e da civilização chinesa, um povo ainda
consciente de sua riqueza cultural e do legado que poderia representar para a
própria reavaliação da modernidade ocidental.
Uma
das consequências da crise da modernidade ocidental nas ultimas décadas foi o
giro para o pensamento e a prática de vidas orientais, coincidindo com o
sucesso do capitalismo japonês e dos tigres asiáticos. Mais do que uma
“conquista ocidental do outro lado do mundo”, fato que economicamente já vinha
se dando desde o século XIX, com a era Meiji japonesa e o colonialismo das
“portas abertas” chinesas, o que se viu no Oriente foi uma espécie de amalgama
entre sua tradição cultural e princípios sociais e econômicos americanos e europeus.
Durante
as décadas de 70 e 80 assistiu-se no Ocidente a uma expansão geralmente
mecânica e simplista de elementos do pensamento oriental que, a partir de
movimentos precursores como o dos hippies nos anos 60, acabou envolvendo
frações importantes da chamada classe média. Essa difusão veio acoplada a uma
crise de valores generalizada e a uma recuperação de correntes irracionalistas
e místicas, muitas vezes ignorando todo o legado positivo da modernidade,
especialmente o projeto de autonomia do individuo e da sociedade.
A
China, em seus múltiplos espaços, se depara com os paradoxos de diferentes
diálogos e conflitos: Ocidente e Oriente (modernidade e tradição concomitantes,
socialismo e capitalismo). Muitas são a redes e os territórios que se interpenetram,
colocando em questão, o tão propalado universalismo da modernidade.
Os
chineses muitas vezes tendem a idealizar o Ocidente e supervalorizar alguns
componentes como o individualismo, a racionalidade e a sociedade de consumo,
justamente elementos que hoje estão sendo questionados por muitos defensores
dessa modernidade.
O
temor de que, sem filtragem, a modernidade capitalista arrase a cultura e o
espaço chineses não é destituído de sentido. A ocidentalização que se projeta a
partir da costa em direção ao interior mais remoto, onde a entrada do turista
estrangeiro e a televisão são os veículos mais eficientes dessa difusão, pode
fazer tabula rasa de todo um passado milenar e uma diversidade cultural que a
ditadura e o nacionalismo, apesar de tudo, não destruíram. A sociedade civil
chinesa, embora nesse ponto de vista tenha poucas chances concretas de
conquistar sua autonomia, não pode perder esta nova e talvez derradeira
oportunidade de reelaborar a prática e os preceitos ditos ocidentais de mundo.
A
China assimila antes de tudo a dimensão econômica, capitalista, da
modernização, justamente sua face mais problemática e questionável. Mesmo
legados mais positivos da modernidade, como o projeto de construção da
autonomia social e individual, devem ser repensados quando transpostos para as
sociedades orientais.
Enfim, para onde vai a
China? A ditadura política parece combinar com a abertura aos investimentos
capitalistas estrangeiros. Talvez se cumpra a profecia de Mao Tsé-tung fez
antes de morrer:
“Vocês estão fazendo a revolução socialista e não sabem
onde está a burguesia. Ela está dentro do Partido Comunista – são aqueles
indivíduos que estão no poder e que tomam o rumo capitalista”.